O eterno Darcy Ribeiro nos ensinou: “A crise da educação no Brasil não é uma crise, é um projeto”. Da mesma forma, a manutenção da desigualdade no Brasil não é uma crise, é um projeto desumano engendrado pelas elites. Enquanto a Constituição Federal de 1988 só funcionar para onerar pobres e aliviar as elites, permaneceremos em crise
Desigual, esse é o retrato do Brasil, que há 520 anos cultiva um sistema de penalização das classes mais pobres. A crise causada pela pandemia do novo coronavírus escancarou a realidade que muitos tentam abafar há anos. Os mais necessitados são os que carregam o país nas costas, a custos altíssimos e sem apoio do Estado.
Fomos criados por uma colonização que deixa fortes marcas até hoje, viramos uma república, enfrentamos golpes e uma ditadura militar. Em 1985, o fim de um ciclo de 21 anos de regime autoritário. Em 1988, a nova Carta Constitucional instauradora do Estado democrático de direito (a Constituição Cidadã), que estabeleceu bases, direitos, deveres e garantias para toda a sociedade.
A expectativa de um Estado justo e democrático ainda não se concretizou em pleno 2020. Com cerca de 210 milhões de habitantes, mais de 40 milhões estão desempregados porque não conseguiram trabalho ou porque desistiram de procurar uma vaga. Mais 27,98 milhões gostariam de trabalhar, mas não procuraram emprego e outros 12,23 milhões estão desocupados. Sim, mais de 80 milhões de pessoas estão sem trabalhar num país que se diz democrático. Os dados foram divulgados em agosto de 2020 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). São brasileiros que vivem na informalidade, sem emprego com direitos estabelecidos, sem a certeza de quanto terão de renda ao fim do mês para pagar despesas básicas, sem segurança alimentar.
O debate sobre a “PEC do Orçamento de Guerra”, por baixo de teses aparentemente técnicas, escancara essa desigualdade de prioridades. (Davidson Luna/Unsplash)
(Davidson Luna/Unsplash)
A pandemia escancara mais uma triste realidade: mais de 67,2 milhões de brasileiros dependem do auxílio emergencial de R$ 600 para conseguir colocar comida dentro de casa e ter o mínimo de dignidade. A desigualdade brasileira se estabeleceu em níveis elevados; o Índice de Gini é de 0,543, valor considerado alto.
À medida que os mais pobres sofrem sem a certeza de que conseguirão pagar as contas básicas e colocar comida na mesa, os super-ricos aumentam suas contas bancárias. Dados da Oxfam apontam que, apenas nos cinco primeiros meses da pandemia (março a julho de 2020), o patrimônio líquido de 42 bilionários brasileiros cresceu US$ 34 bilhões (cerca de R$ 187 bilhões pela cotação atual do dólar). Esse valor equivale a seis anos do Bolsa-Família.
Enquanto isso, assistimos à população desamparada em filas a perder de vista nas agências bancárias de todo o país em busca do auxílio emergencial para saciar a fome, que, aliás, cresceu drasticamente de acordo com a Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) do IBGE, divulgada em 17 de setembro. A pesquisa mostra que, depois de uma década de recuo contínuo, a fome voltou à cena como uma das protagonistas da tragédia brasileira. Mais de 10 milhões de pessoas em situação de insegurança alimentar grave e mais de 74 milhões em situação de insegurança alimentar leve ou moderada, somando quase 85 milhões de pessoas atingidas ou ameaçadas pela fome no Brasil.
Mas não é só de tragédia que vive o Brasil. Há também muita opulência, fartura. Falei dos 42 bilionários brasileiros que faturaram, em cinco meses, o que o Brasil gasta com 14 milhões de famílias em seis anos.
Se há 85 milhões de pessoas atingidas ou ameaçadas pela fome, ao menos há 238 pessoas que, juntas, têm uma fortuna de R$ 1,6 trilhão. Esse é o número de bilionários brasileiros que consta da lista da Forbes, versão 2020. Dá para imaginar uma fortuna de R$ 1,6 trilhão nas mãos de 238 pessoas, num país com mais de 10 milhões de pessoas passando fome agora, ontem, hoje, amanhã? Dá para entender por que a primeira palavra deste texto é o adjetivo “desigual”?
É urgente e necessário redistribuir renda para minimizar a brutal desigualdade que está aí, visível, gritante, às escâncaras por toda parte, nos rincões e nas grandes cidades, ignorada pela maioria dos governantes. Para os brasileiros forjados nas dificuldades e durezas da vida, é preciso garantir o mínimo previsto num Estado que se proclama democrático e de direitos.
Como fazer 67 milhões de pessoas, que hoje recebem um auxílio emergencial, terem uma renda básica financiada por um país no auge de uma crise econômica, social e sanitária? Há meses governo e parlamentares buscam a resposta; porém, nos lugares errados. Diversas possibilidades que só aumentam o abismo que separa ricos e pobres foram aventadas, como a criação de um novo imposto sobre transações digitais (uma espécie de CPMF, que agrava a regressividade do sistema tributário), a redução do investimento básico nas áreas de saúde e educação, a extinção de programas assistenciais, o congelamento do reajuste anual do salário mínimo, o congelamento salarial do funcionalismo público.
A nata política brasileira só não pensou na possibilidade mais óbvia: cumprir a Constituição Federal de 1988 e cobrar impostos de forma progressiva. Diz o parágrafo 1º do artigo 145: “Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte […]”. Esse é o chamado princípio constitucional da capacidade contributiva, que se pode resumir no mais genuíno e singelo primado de justiça: quem tem mais paga mais.
Um grupo de economistas, especialistas e entidades, sob a coordenação técnica do professor Eduardo Fagnani, olhou para onde muitos se recusam a olhar: a subtributação dos super-ricos brasileiros. Curioso notar que esse pequeno punhado de pessoas se ajusta bem ao prefixo “super” quando se refere à fortuna que acumularam, mas, quando se trata de pagar impostos, o prefixo que lhes cabe é o extremo oposto: “sub”.
O documento “Tributar os Super-Ricos para Reconstruir o País”, lançado no dia 6 de agosto deste ano, propõe oito medidas que têm o potencial de arrecadar cerca de R$ 292 bilhões por ano, tirando o fardo dos mais pobres e transferindo para a elite, que historicamente sempre se recusou a contribuir com a redução da desigualdade no Brasil.
Nas várias vezes em que o mundo atravessou momentos de crise, as elites tiveram de dar sua parte, assim como todos, mas isso nunca se aplicou no Brasil. O país é uma espécie de oásis para milionários. Aqui é possível aumentar a fortuna e, ao mesmo tempo, pagar menos impostos.
Se observamos a tabela das alíquotas de Imposto sobre a Renda da Pessoa Física (IRPF) é possível notar uma enorme discrepância. Quem recebe R$ 4.770 paga o mesmo percentual de quem recebe R$ 100 mil: 27,5%.
Uma nova tabela do IRPF, com a introdução de quatro novas alíquotas (30%, 35%, 40% e 45%), combinada com a revogação do privilégio tributário concedido às rendas do capital (isenção da distribuição de lucros e dividendos e dedução dos juros sobre capital próprio), é a principal medida proposta no documento, com um potencial de incremento na arrecadação do imposto na ordem de R$ 158 bilhões por ano na arrecadação. O documento propõe ainda a isenção do imposto para quem recebe até R$ 2.862, cerca de 34% dos contribuintes.
Em momentos de crise, é comum os países aumentarem a arrecadação com impostos progressivos, seguindo o princípio da capacidade contributiva. Nos Estados Unidos, as alíquotas máximas de imposto de renda ficaram acima de 75% da metade da década de 1930 até meados dos anos 1970. No Reino Unido, a alíquota máxima ficou acima de 90% entre as décadas de 1940 e 1970. Atualmente, a alíquota máxima nos Estados Unidos é de 37% e, no Reino Unido, de 45%. Ou seja, no pós-guerra, toda a sociedade ajudou na reconstrução econômica dos países.
No Brasil, a renda e o patrimônio são pouco tributados; seguem um caminho inverso da tendência mundial, respondendo por apenas 23% da arrecadação. Nos Estados Unidos, renda e patrimônio representam 60% da arrecadação. A média dos países da OCDE é de 40%. Por outro lado, a tributação sobre o consumo representa quase 50% de tudo o que se arrecada no Brasil. Nos Estados Unidos, esse percentual é de 17%, enquanto a média dos países da OCDE é de 32,4%.
Os milhões de brasileiros que têm dificuldade para colocar comida na mesa precisam lidar com uma altíssima carga tributária para comer e se manter no dia a dia. Os que têm jatinhos, lanchas, iates, mansões, não. Injusto, desigual e estarrecedor.
A instituição do imposto sobre grandes fortunas (IGF), prevista no artigo 153, inciso VII, da Constituição, pode adicionar mais R$ 40 bilhões aos cofres da União. Pela proposta de tributação dos super-ricos, o valor seria obtido de forma gradual, com alíquota inicial de 0,5% sobre patrimônios acima de R$ 10 milhões; 1% sobre patrimônios acima de R$ 40 milhões e até R$ 80 milhões; e 1,5% sobre patrimônios acima de R$ 80 milhões.
Com apenas duas medidas (IRPF e IGF) já teríamos um acréscimo de R$ 200 bilhões na arrecadação do país, mais que suficiente, por exemplo, para ampliar o Programa Bolsa-Família, tanto em relação ao número de famílias atendidas quanto ao valor médio do benefício.
Com o passar do tempo, fica mais claro que as reformas chamadas de “estruturantes”, iniciadas em 2017 com a reforma trabalhista no governo de Michel Temer, seguida pela da Previdência de Jair Bolsonaro em 2019, prestaram-se somente a concentrar mais renda e riqueza no topo e a aprofundar a desigualdade. Para os mais pobres, o que vemos é o aumento do desemprego, do desalento e da fome. É fundamental encarar as mazelas e não deixar, mais uma vez, que os pobres paguem essa conta.
Há medidas simples e emergenciais que podem ser tomadas. O documento que convoca os super-ricos ao pagamento de tributos também prescreve a criação da Contribuição Social sobre as Altas Rendas (CSAR), com uma alíquota de 10% sobre os rendimentos totais que excederem o valor anual de R$ 720 mil, uma medida que alcança cerca de 208 mil contribuintes, o que representa 0,098% da população. O potencial arrecadatório é de R$ 35 bilhões.
Outro flanco que contribui para o aumento da desigualdade são as heranças, que, no Brasil, gozam de alíquotas muito baixas na comparação internacional: alíquota máxima de 8%. Nossos vizinhos Chile e Equador cobram 35%; Estados Unidos, 40%; Alemanha, 50%; Espanha, 64%; Bélgica, 80%. O Estado brasileiro incentiva a manutenção dos super-ricos, da concentração renda e do patrimônio. Uma adequação das alíquotas do imposto sobre heranças, de até 8% para até 30%, percentual abaixo de todos os países citados, possibilita a arrecadação de cerca de R$ 14 bilhões.
O documento de tributação dos super-ricos também olha para setores econômicos que produzem externalidades negativas, como o setor extrativo de recursos minerais, que geram demandas de políticas públicas, principalmente assistenciais, de saúde e ambientais. É justificável que maior parcela das atividades do setor seja onerada por uma elevação da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL). O aumento da alíquota para 20%, no caso das pessoas jurídicas que atuem no setor extrativo de recursos minerais, pode gerar acréscimo estimado de R$ 3 bilhões. A alíquota de 10%, no caso das demais pessoas jurídicas, poupando as empresas do Simples Nacional, pode gerar mais R$ 8,5 bilhões.
A situação de urgência econômica também permite a elevação temporária da alíquota da CSLL para o setor financeiro. Pode-se aumentar, entre 2021 e 2024, a alíquota dos bancos para 40%, distribuidoras de valores mobiliários, corretoras de câmbio e de valores mobiliários, sociedades de crédito, financiamento e investimentos, sociedades de crédito imobiliário, administradoras de cartões de crédito e sociedades de arrendamento mercantil.
Há várias possibilidades de aumento da arrecadação que podem promover uma redução da desigualdade social no Brasil, incrementando as receitas e ajudando o país a sair do rombo fiscal em que se encontra. Os pobres não precisam arcar mais uma vez com o ônus.
Precisamos fortalecer as micro e pequenas empresas, optantes pelo Simples Nacional, com a isenção do Imposto sobre a Renda das Pessoas Jurídicas (IRPJ) e da CSLL para as empresas com faturamento bruto abaixo de R$ 360 mil anuais. A isenção pode reduzir em quase 60% o peso dos impostos; mais de 900 mil empresas seriam beneficiadas, cerca de 75% das optantes pelo Simples. São quase 12 milhões de trabalhadores empregados pelas micro e pequenas empresas, que podem expandir os negócios e aumentar a quantidade de trabalhadores.
Todos os pontos citados até aqui contribuem para a redução da desigualdade e para a efetivação da progressividade de acordo com a capacidade contributiva.
Com o incremento de receitas também é possível propor um novo modelo de repartição do imposto de renda e do imposto sobre grandes fortunas com estados e municípios. O documento de tributação dos super-ricos propõe que 8% da arrecadação do imposto de renda e 10% da arrecadação do IGF sejam repartidos com os estados e o Distrito Federal, e que 2% do IR e 10% do IGF sejam repartidos com os municípios. Os recursos serão distribuídos de forma direta, 50% proporcionalmente à população e 50% na proporção inversa do PIB per capita.
Por esse modelo de repartição do imposto de renda e do imposto sobre grandes fortunas, os estados teriam um reforço estimado em R$ 83 bilhões, e os municípios, em R$ 54 bilhões.
O eterno Darcy Ribeiro nos ensinou: “A crise da educação no Brasil não é uma crise, é um projeto”. Da mesma forma, a manutenção da desigualdade no Brasil não é uma crise, é um projeto desumano engendrado pelas elites. Enquanto a Constituição Federal de 1988 só funcionar para onerar pobres e aliviar as elites, permaneceremos em crise.
O Brasil só se tornará uma nação digna quando garantir assistência, saúde, educação, cultura, trabalho, moradia e comida todos os dias na mesa de 210 milhões de brasileiros e brasileiras.
É pedir demais? É sonhar demais? Não cumpriremos esse dever-ser sem que os super-ricos sejam justa e devidamente tributados. Poupando 99,7% dos brasileiros e cobrando apenas do 0,3%, os super-ricos, já seremos um país menos desigual.
Eis aí um primeiro grande passo de uma longa caminhada.