Texto suprime parte do poder dos entes federados que têm suas próprias competências para instituir tributos, escreve Francelino Valença

A discussão sobre reforma tributária não é nova. Há quase um consenso de que o nosso sistema tributário é deveras complexo e, portanto, deveria ser reformado. A tônica da simplificação toma corpo e, por ora, expurga a discussão sobre a face mais cruel do nosso sistema: a regressividade. Este pode não ser o principal, mas indubitavelmente é um significativo vetor a contribuir para o aumento das desigualdades ao inverter a lógica e ferir princípios constitucionais como o da capacidade contributiva e o da progressividade. A narrativa em desenvolvimento centra forças na urgência de modificar e fundir os principais impostos dos entes subnacionais, o ICMS e o ISS; sendo o 1º na ordem de R$ 700 bilhões, o 2º de R$ 100 bilhões por ano. Para tal empreitada, faz-se necessário uma profunda mudança constitucional no poder de tributar das respectivas unidades federadas que, se aprovada, deverão renunciar a parte do seu poder de tributar e outorgá-lo para o que seria um conselho paritário formado por representantes dos estados e dos municípios.

Nessa concepção do Conselho Federativo, arvora-se uma paridade das decisões quando, aproximadamente, a proporção da arrecadação dos municípios corresponde a 1/7 da arrecadação dos Estados. Seria isso razoável? Encontraríamos paralelo em alguma fusão ou incorporação empresarial, decerto que não.

Em relação ao poder de tributar, não poderíamos estar arranhando o pacto federativo ao suprimir parcela de poder dos entes federados que têm as suas competências próprias para instituir os respectivos tributos, dispostos no texto constitucional, que ora estão para ser extintos, com a criação de um novo de competência compartilhada não previsto pelos constituintes de 1988 e muito menos por uma nova constituinte? É cristalino, os fervorosos defensores da bandeira da simplificação tributária irão, de pronto, defender com todos os argumentos possíveis a constitucionalidade da criação de um novo tributo por meio de emenda, mesmo que traga sérios riscos a autonomia administrativa, financeira e tributária dos entes federados.

Outro ponto não menos importante, as administrações tributárias e, por consequência, os cidadãos correm um enorme risco se os fiscos ficarem subordinados a um conselho de administração formado por integrantes da iniciativa privada, como foi defendido por alguns arautos do Estado-mínimo. O sigilo das operações mercantis, dos dados, da vida privada e da intimidade estarão seriamente comprometidos, com prejuízos difíceis de mensurar.

Soma-se a isso, a possibilidade de todo o contencioso tributário, ou seja, das decisões administrativas em matéria tributária serem decididas por aqueles que são autuados. Isso mesmo, não temos segurança de que o ato administrativo do lançamento, ou melhor, a revisão do referido ato administrativo seja realizada por servidores de carreira, no caso, funcionários da administração tributária. Uma aberração que não encontra paralelo nas estruturas das administrações tributárias de países desenvolvidos.

O mais impactante: a principal reforma tributária que o país precisa, a que reduz o fardo tributário sobre os que têm menor poder aquisitivo e a transfere para o de maior, não necessita de emenda constitucional. Pode ser feita de forma simples, célere, eficaz e, acrescente-se, tem uma enorme capacidade de impulsionar o crescimento econômico, por aumentar o poder de consumo daqueles que têm uma demanda reprimida, além de nos aproximar das boas práticas internacionais adotadas pelos países-integrantes da OCDE.

O leitor pode indagar: se a reforma sobre a renda e o patrimônio é bem mais simples, célere e eficaz, por que não está em pauta? A resposta não é tão simples como parece, mesmo assim, atrevemo-nos a elucubrar.

Talvez não esteja em pauta por não ser do interesse dos grandes grupos econômicos e, sobretudo, daqueles que detém a riqueza do país. Afinal, estamos falando em redistribuição de renda por meio da tributação e, infelizmente, os exemplos de outros países, mesmo que adotados pelas maiores economias capitalistas do mundo, não nos serve de modelo quando é para promover a justiça social, apenas quando é para suprimir da sociedade direitos e garantias previstos na Carta Política do nosso breve e tardio Estado de bem-estar social.

 

Francelino Valença, 50 anos, é auditor fiscal do Tesouro do Estado de Pernambuco. Preside a Fenafisco (Federação Nacional do Fisco Estadual e Distrital) e o Sindifisco-PE (Sindicato do Grupo Ocupacional Administração Tributária do Estado de Pernambuco).